23 de agosto de 2013

do bem*


"D. Leocádia, quem recebe o bem fica sempre humilhado. O bem constrange. O que chamas piedade e o bem põe quem o recebe na situação de te morder as mãos. E continuar a fazer o bem é elevar-te pelo bem que fazes e rebaixar-me pelo bem que receb. Acabas por gastar o que em mim há de melhor. Oh!, D. Leocádia, se eu pudesse - eu é que te fazia o bem, para tu veres o que é o bem recebido, o bem agradecido e o bem amargurado. Antes tu me fizesses, D. Leocádia, porque o mal põe-me ao teu nível, e o bem acostuma o desgraçado a ser mais desgraçado ainda. Degrada-o. Põe-no na dependência da desgraça. Cria uma superioridade, a tua, e um azedume, o meu. Classifica para todo o sempre. Estou perdido senão reajo em ódio." 

(Húmus, Raul Brandão)

29 de outubro de 2011


o assombro*


Ne vous exercez pas aux Lettres si, avec une âme obscure, vous êtes hantés par la clarté. Vous ne laisserez après vous que des soupirs intelligibles, pauvres bribes de votre refus d'être vous-même. (E.M. Cioran)


por outro lado, gosto da expressão "arrepiar caminho". é coisa que por aqui se faz. muito. olha-se adiante. o corpo balançado. peito à frente, ombros atrás.
e toca a arrepiar caminho, que há conforto na terra já pisada.

7 de abril de 2011


Fragmentariamente habita o homem esta terra*


eis o terceiro post consecutivo do género. e para redundância suprema, no terceiro, um trio.



Adoecer, Hélia Correia | Resumo - a poesia em 2010, Vários | O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento, João Barrento

Referências várias a Schlegel, Llansol, Eduardo Lourenço, Benjamim, Eckart, Deleuze, Derrida, Novalis, Barthes, Musil, Hölderlin (da frase que dá título ao post) e outros (que não me cabe tudo na cabeça de vento), sem nunca pesarem ou exaustarem o texto. Gosto à brava deste meta-ensaio.

O fragmento traz em si a nostalgia do todo de onde "saltou". A sua incompletude é ao mesmo tempo a razão do seu fascínio (pelo enigma do ausente) e o que lhe confere a sua enorme capacidade de apelo à imaginação. De facto, o fragmento é, por natureza, produtor de imagens mentais e abrigo da imagem sensível que, nas artes, não pode ser mais que fragmento, e sê-lo-á tanto mais quanto mais o seu princípio for o da intensidade sensível, e não tanto o da vontade de ser conceito, ou um todo discursivo. O fragmento é, assim, o estigma e o estímulo do puramente humano - a começar pela linguagem, que, apesar de todas as gramáticas, não passa de um enorme e caótico amontoado de material sígnico (é deste estado de fragmentação caótica, afinal não sistemático, que as artes das palavras extraem os maiores dividendos e a sua força criativa). (João Barrento)


28 de março de 2011


our life, this temporary eclipse*


naquela mesma tarde, a Poesia Incompleta. e, se lá entrei em boa companhia, à saída éramos ainda mais e, portanto, melhores:


Trilogy/Trilogia, H.D. (Hilda Doolittle)



Every hour, every moment / has its specific attendant Spirit; // the clock-hand, minute by minute, / ticks round its prescribed orbit; // but this curious mechanical perfection / should not separate but relate rather, // our life, this temporary eclipse* / to that other...

12 de março de 2011


Pu l'è avnù e' sòul*


na semana passada visitei a Trama e, em cedências de gulosice, saí de lá com O Mel. cheio de histórias de gente verdadeira e versos maiores.



CANTO DÉCIMO PRIMEIRO

Anteontem primeiro domingo de Novembro
a névoa podia cortar-se à faca.
As árvores brancas da geada e as estradas e planícies
pareciam cobertas por lençóis. Depois apareceu o sol *
enxugando o universo e somente as sombras
permaneceram banhadas.

Pinela, o camponês, atava as cepas
com ervas secas que segurava entre as orelhas.
Enquanto trabalhava falei-lhe da cidade,
da minha vida que passara num relâmpago
do meu terror à morte.

Aí silenciou todos os rumores que fazia com as mãos
e só então se ouviu um pequeno pardal cantando ao longe.
Disse-me: medo porquê? A morte nem sequer é maçadora,
apenas vem uma vez.


1 de março de 2011


take me into your skin (10)


desenhava riscos nas margens enquanto se escavava
procurando ainda uma razão para povoar a folha

como o cão que esquece em que recanto do jardim escondeu o osso


uma fenda abrindo-se do silêncio branca ainda de ruído
em tremor persistente - o lápis chegando à folha

como quando o corpo se queria escapar para debaixoporeparadentro da sua pele


11 de fevereiro de 2011


It was really, really grey (9)


tão cerrado o arnevoreiro em volta
do caminhar para ti tão cego
quanto o mergulhar tão afunda(n)do em recantos do euescuro

tão densos os passos e tão denso o espaço

tão ociosos estes gestos
depois recolhidos
depois de quebrados
em tão imprecisos restos

no silêncio que é este respirartebeberte
o peito enchendo mais intenso mais cheio mais

o medoarrojo certo constante

um acorde martelado repetido e martelado e repetido


16 de janeiro de 2011


there's a glow around everything; (8)


...............................................You are floating with me on a cold ocean,
...............................................But a special warmth flickers
...................................................(Richard Dehmel)

no inverno frio da minha mão
enquanto te dispo ensaiando o arrepio

já a promessa de febre e suor
já um tremor de luz inquieta

— a brancura da tua pele diz-me neve —

e como o gelo
queima

e como a neve
cega

e como a luz
raia

refratando-se quando chego
igual


14 de dezembro de 2010


We don't need a sign to know better times (7)


é o tempo do corpo que sonha a outra pele
— ser menos linha no contorno —

poros abertos se te encontram


supõe que um gume cinzelando
em sugestões de contínuo sangrar

meia dúzia de cães ladram à porta do quarto
vindos ao cheiro da carne


supõe que trémula — a carne —
de se fazer tão tua

e sempre ter de te matar um pouco em mim
purgar-te de mim
para não morrer de vez

25 de novembro de 2010


Speak low (6)


.................... KJ28E4H3PRC3 ..................................................[Speak low when you speak, love]

fala-me desse amor
com a tua voz de sombra
com a tua voz de noite
com a tua voz de chuva
com a tua voz de dia de sol alongado na sede

diz como dói dizer
diz doendo dizer


sopra-me a palavra — ou agarra-me o pulso — preso o braço no fundo das costas — e
sopra-me a palavra